28 de março de 2024

Pedalar: Quem aprende não esquece

 

Por Sílvio Sá*

Ano passado ouvi algumas vezes Dona Selma falando que queria comprar uma bicicleta. Ela morava numa casa em um lugar onde o comércio não era muito perto. Nem longe na verdade. Uma distância boa para ir de bicicleta mas preguiçosa para ir a pé.

Nos quarenta e poucos anos de convivência com minha mãe nunca tinha visto nenhum indício de interesse dela por bicicleta. Lógico que achei isso muito legal. Eu já tinha dado uma bicicleta para um sobrinho e prometido outra para meu irmão mais velho que não tinha vindo buscar ainda. Estava colocando toda a família para pedalar.

Pesquisando no Mercado Livre achei uma bicicleta que seria a ideal para a minha mãe. O preço estava muito bom e era época de Natal. Tudo a favor. Comprei. Achei uma bicicleta dobrável da Blitz sem marcha, muito bem conservada. Estava perfeita. Fechei negócio e fui buscá-la. Só que minha mãe estava viajando e eu não sabia quando ela retornaria a Brasília. O presente ficou guardado lá em casa.

Pedalar: Quem aprende não esquece
Tenho dado uns presentes estranhos para a minha mãe. No outro ano eu dei uma poltrona velha que ela reformou com suas artes de patchwork. Ficou muito legal!

Aliás eu tenho dado uns presentes estranhos para a minha mãe. No outro ano eu dei uma poltrona velha que ela reformou com suas artes de patchwork. Ficou muito legal.

Eu querendo que ela voltasse de viagem para entregar o presente e ela só enrolando. Acabei contando por telefone mesmo. A resposta já foi a que eu esperava: “menino, você não tem juízo?”. Levei a bicicleta para a casa dela. Quando cheguei com a Blitz toda dobrada que me recebeu na porta foi Felipe, meu sobrinho mais novo. Mesmo com a bicicleta naquele jeito o danado identificou o que era, abriu um sorrisão e já gritou: “bicicleta”. Queria até mesmo andar nela usando a sua experiência de dois anos e meio de vida.

Demorou mais algum tempo e finalmente ela voltou pra casa e tomou posse do presente repetindo a observação anterior: “menino, você não tem juízo?”.

A pedalada – Um belo dia estava na casa dela e peguei a bicicleta para a minha namorada testar na rua em frente ao condomínio. Falei para minha mãe ir lá andar também. A rua da frente não tem movimento e é quase plana. Um bom lugar para ela reaprender a pedalar depois de quase 30 anos da última experiência ciclística que ela lembrava. Mas teve uma outra tentativa nesse meio tempo, há uns 10 anos. Não rodou nem 3 metros com medo de cair e abortou a missão. Dessa vez convenci. Ela pegou a bicicleta e saiu andando ainda insegura e em zig-zag. Achei que fosse cair. Principalmente quando chegou no final da rua e tinha que fazer a volta. Ainda tentou parar e ir embora mas insisti mais um pouco.

Assim foi ela. Foi tomando gosto e a cada volta ficando mais firme. Ia mais longe na rua e fazer a volta já não era problema. Até fiz um pequeno video da façanha usando o celular. Agora tinha história para contar aos netos. Sentindo o seu desenvolvimento e interesse sugeri que fossemos para uma ciclovia que era ali bem perto, nem 1 km de distância. Voltei em casa para pegar o carro, colocar a bicicleta lá dentro> Minha mãe, namorada e meu filho também. Ela já toda segura disse que ia pedalando. Não acreditei a princípio mas já que está disposta…

De saída tinha uma subidinha na outra rua onde já pensei que ela ia parar e empurrar. Qual nada. Pedalou mais da metade da subida, empurrou um pouquinho e montou de novo na bicicletinha azul. Tudo indo bem, um carro saindo da outra rua mas não foi problema. Primeiro quebra-molas, ok. Segundo e terceiro também. Vira pra direita e pega uma descida. Agora vai pro chão. Nada, tudo tranquilo.

Pedalar: Quem aprende não esquece
Dona Selma após a queda

Chegamos na ciclovia. A pista é lisinha, de asfalto, pouco movimento. Deixei a Márgea ali com ela e fui de carro com o Silvinho para um ponto mais na frente. Logo ela chega até onde estou e me confidencia: “eu tenho medo daquelas bolas”. No meio tem umas bolas de concreto para impedir o acesso de carros mas tem espaço de sobra para passar. Falei que não precisava ter medo, afinal as bolas não iam se mover. Falei isso e lá foi ela faceira com a bicicleta. Fiquei aqui parado filmando com a câmera digital. Não deu 30 segundos que ela falou comigo e eu saí correndo feito um doido!

Acho que uma das tais bolas de concreto avançou nela e tentou morder seu pé. Vinha bem tranquila pedalando, passou pelas bolas e caiu do nada, sem nenhuma explicação. Cheguei nela e vi o queixo sangrando um pouco, apesar disso ela ria. Reclamou que bateu o peito no guidão, colocou um dedo tampando o sangramento do queixo. Corri pra pegar o carro e tocamos para o hospital. Alguma espera no atendimento e já aparece ela volta com 3 pontos no queixo, um curativo mais ainda sim sorrindo.

E assim acabou a história ciclística da minha mãe. Se assustou com uma bola parada, caiu sem saber como, bateu o queixo e nunca mais quis saber da bicicleta. Ainda insisti um pouco para tentar de novo mas como diz o ditado, tem três coisas que velho não pode tomar: tombo, susto e chuva.

Acabei vendendo a bicicleta para um amigo, o que daria outro “causo”. E Dona Selma foi morar no Rio de Janeiro, cheio de ciclovias e gente pedalando. Era a hora de ela aproveitar. Mas ainda não desisti dessa causa.

Assista ao vídeo:

Sobre o autor

Sílvio Sá é coordenador do grupo Mountain Bike Brasília
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