Por Vivian Dombrowski*
Hoje peço licença para falar um pouquinho sobre as bicicletas. Sei que muitos de vocês, além de correrem também são adeptos, ou ao menos simpatizantes, das bikes.Muito se fala em ciclovias, ciclo-faixas e a bicicleta como modal de transporte na cidade sustentável. Entretanto, o que muitos não previram foram os problemas que estariam atrelados ao uso da bicicleta para locomoção diária.
Um dos principais pontos levantados, a respeito das ciclo-faixas foi a sua extensão, isto é, se era possível ligar locais “úteis”, bairros residenciais ao centro comercial, zona industrial, e se ela seria completa. Em muitas cidades elas não chegavam a ser efetivamente úteis por serem mal planejadas. Em outras, haviam outdoors, postes e pontos de ônibus em seu trajeto, além de buracos e mato. E, ainda, em várias cidades elas eram compartilhadas com ônibus ou só poderiam ser usadas em horários específicos.
Outro ponto é a segurança. Como usar a bicicleta para ir e vir se no primeiro semáforo poderia ser roubada? Ou ainda, como pedalar em uma cidade onde o ciclista é praticamente “invisível” nas ruas? Não precisamos nem relembrar os recentes casos de mortes e atropelamentos de ciclistas não só no Brasil mas também em outros países.
Esses são os problemas que de imediato vem a mente quando falamos da bicicleta como modal de transporte. Os dilemas explícitos, aqueles conclamados nos discursos políticos, nas pseudo-campanhas educacionais do governo, no marketing eleitoreiro e empresarial, intercalado com o já batido tema das mudanças climáticas.
Entretanto fatores simples que impedem a efetiva mobilidade urbana sustentável passam despercebidos por todos, exceto daqueles que realmente querem e precisam deste meio de transporte. E então vem a problemática do vestiário e, principalmente, onde guardar a bicicleta.
Já vimos no post sobre a Run Commute – corrida para ir e vir para o trabalho – que um dos maiores empecilhos é a falta de local para tomar banho e se trocar. E com a bicicleta não é diferente. Encontramos aí o primeiro obstáculo impensado.
O segundo problema invisível é onde guardar a bike? Algumas universidades e empresas possuem bicicletários, mas outras tantas, não. Para ver como nem o próprio comércio está preparado para aceitar a bicicleta circulando no dia a dia das grandes cidades, veja o sufoco pelo qual o triatleta curitibano, Arnaldo Laporte Jr passou com sua filha, ao irem até um consultório médico, de bike:
“Estava indo ao médico levar minha filha Luana (9 anos) e resolvemos ir de bike (não era nada sério, óbvio…rsrsrs, antes que me chamem de pai louco, ou algo parecido). Era apenas uma consulta para atestado físico. Aproveitamos para fazer um passeio, saímos de casa, demos uma volta e fomos ao médico.
Como sou pontual, acabei chegando uns 5 minutos de antecedência. Imaginei que deveria haver um local para guardarmos (estacionarmos) as bikes. Aí veio a surpresa, não havia lugar algum para deixarmos as bicicletas. Fomos em 3 estacionamentos próximos e nenhum deixou que estacionássemos as bikes, mesmo pagando o valor de moto (conforme minha sugestão). A hora foi passando, e não tinha solução, até que parei em uma loja e resolvi pedir ajuda. Expliquei a situação para a recepcionista, que falou com o gerente e autorizou que deixássemos (de favor) a bike lá, ‘lembrando que fecharia em 30 minutos a loja’. Corremos para o médico, fomos atendidos e saímos correndo para buscarmos a bike. Chegando lá, estavam fechando a loja e, por sorte, conseguimos pegar as bikes, senão teríamos que voltar a pé, salientando a gentileza da moça, que se não fosse ela, teríamos que voltar sem poder ter ido ao médico.”
E ele ainda conta mais uma aventura em pedalar pela cidade:
“Há alguns anos fui com toda minha família até o Zoo de bike e, chegando lá, mesmo tendo bicicletário, não pudemos deixar as bikes lá, pois não tinha segurança e também não pudemos entrar de bike no Zoo, mesmo que empurrando. Voltamos.”
Estes são alguns dos “causos” apenas… mas tem mais…
Para encerrar, afirmo que estamos longe, mas muito longe de tentarmos ser ecologicamente corretos e mais civilizados, uma vez que todo o discurso existe, mas na prática, não vemos políticas públicas a fim de mudar esta situação.
Em se tratando de centros urbanos, deixar a bicicleta “acorrentada” a um poste, sem dúvidas, é a pior das opções. Ela não estará lá quando voltar, acredite.
E esse não é um problema apenas no Brasil. Segundo o jornal The Guardian, em Londres, há um problema relativamente similar. A cidade não comporta o número de bicicletas, isto é, não há estacionamentos ou locais suficiente para deixar/estacionar as bicicletas. Lá a questão envolve os custos em relação aos bicicletários (aqui nem se pensou neles ainda). Inclusive há uma lista de locais onde é possível “estacionar” suas bikes e algumas sugestões de “lockers”.
É claro, há muitas pessoas que podem usufruir da bicicleta como meio de transporte. E usufruem bem. Fazem seus deslocamentos diários para o trabalho, residência, compromissos porque possuem estrutura para isso. Ainda bem que mesmo uma minoria pode usar a bike. Mas bom seria se muito mais pessoas tivessem essa oportunidade.
Fico pensando, ao ver tantas obras para a Copa do Mundo, e uma mísera faixa ao longo de algumas avenidas, que eles denominam “ciclo-faixa”, apenas para constar o item “sustentável e ecologicamente correto” em seus projetos. Fico pensando em QUEM eles pensam ao projetar tudo isso. Não, não é no cidadão que precisa fazer uso disso diariamente. A população não é ouvida, quiçá atendida. Leio que reuniões aconteceram com membros da sociedade, governo, etc mas não leio uma ata, uma proposta útil, uma decisão colocada de fato em prática.
Projetos como os que estão sendo feitos, principalmente visando a Copa do Mundo de 2014, são projetos que ficarão obsoletos, se é que terão algum uso – no que tange às ciclovias e mobilidade urbana. Não foi previsto que tudo envolverá mais custos implícitos, e muitos deles por conta das lojas, comércios, empresas que forem simpatizantes em atrair essa clientela, afinal ninguém é obrigado a colocar um “estacionamento para bicicletas” na sua padaria, por exemplo. Ou será feita uma lei que os obrigue? Provavelmente. É mais fácil repassar o ônus.
Há ainda aqueles com o discurso de que “pelo menos estão fazendo alguma coisa”, “melhor do que nada” e aí vemos a terrível cultura da migalha que o brasileiro insiste em herdar. Melhor uma porcaria do que porcaria nenhuma. Mas o dinheiro usado dos cofres públicos será igual seja para uma coisa fajuta ou uma obra de qualidade. Chega de batalhar e se contentar com uma passada de mão na cabeça. Com muito custo os próprios ciclistas conseguiram um mísero espaço no dia a dia das cidades, mesmo que circulem por aí como potenciais alvos ambulantes.
Inspirar-se em ideias de outros lugares é válido. Mas simplesmente jogá-las numa cidade onde a cultura é totalmente diversa, é conteúdo eleitoreiro. Não há consciência, não há estrutura, não há segurança, não há vontade. Vontade de fazer as coisas darem certo, vontade de beneficiar a população, vontade de ver uma cidade melhor. Só há o desejo de embolsar mais e mais dinheiro, de ignorar necessidades coletivas em prol da realização pessoal, de jogar o cidadão à indiferença, de criar cada vez mais elefantes brancos e fantasmas em pleno século XXI.
Em um país que tem por fundamentos a dignidade da pessoa humana e a cidadania, que prevê o direito de ir e vir e a participação social em sua Constituição Federal, vemos atropelados direitos fundamentais, ou melhor, nem são atropelados porque sequer são vistos. São simplesmente ignorados.
A ideia é bonita, a necessidade é urgente mas a efetiva prática tem que ser repensada. Não bastam extensas vias para as bikes circularem se não houver segurança para o ciclista no percurso, assim como local seguro para guardá-la. A ideia de sustentabilidade urbana vai um pouco além. Ela envolve aspectos culturais, sociais, econômicos, antropológicos e ambientais.
No país da bolsa, está na hora de termos a bolsa respeito.
Artigo publicado origiralmente no blog Papo de Esteira