24 de novembro de 2024
Cena de "O Sonho de Wadjda" - Foto: Divulgação

Filme fala sobre sonho de menina saudita de ter uma bicicleta

Haifaa al Mansour, primeira cineasta mulher da Arábia Saudita fala de como foi dirigir “O sonho de Wadjda”, sobre uma menina que sonha em ter uma bicicleta

Cena de "O Sonho de Wadjda" - Foto: Divulgação
Cena de “O Sonho de Wadjda” – Foto: Divulgação

Wadjda é uma garotinha de 10 anos de Riade, Arábia Saudita, que ouve rock, brinca com um menino e, mais que tudo, quer ter uma bicicleta. Soa comum, mas é complicado em um país onde as mulheres só saem à rua com autorização masculina. Para conseguir comprar sua bike, Wadjda se inscreve no concurso de declamação do Corão da escola, de olho no prêmio em dinheiro. “A bicicleta é uma metáfora da liberdade inexistente das mulheres sauditas”, diz à Tpm Haifaa al Mansour, 38 anos, diretora de O sonho de Wadjda. “As garotas têm de lutar, se impor.” E ela sabe do que está falando: apesar das restrições à cultura e às mulheres, O sonho de Wadjda é o primeiro longa rodado inteiramente dentro do país.

A seguir, leia uma entrevista da revista Tpm com a cineasta:

Tpm: Como você decidiu se tornar cineasta?

Haifaa al Mansour: Eu amo filmes desde quando consigo me lembrar, eles sempre funcionaram como um tipo de válvula de escape para mim. Quando eu era criança, meu pai nos mostrava muitos filmes, acho que para nos manter quietos – éramos doze irmãos! Naquela época, TV a cabo era ilegal na Arábia Saudita, então meu pai organizava noites de cinema para nós: colocávamos a televisão no quintal e sentávamos todos juntos, era romântico. Os filmes egípcios antigos e os de Bollywood eram nossos preferidos, mas os filmes americanos me impactavam mais. Quando fiquei mais velha, passaram a existir locadoras de vídeo na Arábia Saudita, mas eram proibidas para mulheres. Como eu não podia entrar, fiz amizade com o rapaz que trabalhava em uma das locadoras perto de casa e ele levava o catálogo de filmes na porta da loja para eu olhar. Com o tempo, comecei a fazer alguns curtas e, enfim, um documentário [Women Without Shadows, sobre a história e realidade das mulheres sauditas] que trouxe bastante visibilidade para mim e tornou meu nome razoavelmente conhecido. Depois que terminei a escola, fui estudar cinema na Universidade de Sidney e comecei a desenvolver O sonho de Wadjda, meu primeiro longa.

Você sofreu preconceitos por ser mulher?

Eu não gosto de focar em preconceitos e obstáculos. Todo mundo possui dificuldades e para as mulheres sauditas é muito fácil dizer que tudo é difícil, que a Arábia Saudita é um país muito conservador e não fazer nada para mudar esse quadro. Precisamos seguir em frente, lutar e torcer para que consigamos transformar a sociedade saudita em um povo mais relaxado e tolerante. O reino está se abrindo, há muitas oportunidades para as mulheres agora, as coisas estão mudando. Mas, definitivamente, eu ainda não posso dizer que é um paraíso. Sempre haverá pessoas que irão pressionar as mulheres para que elas fiquem em casa, quietas, mas nós temos que lutar.

Sua família e seus amigos te apoiaram?

Meus pais sempre foram muito liberais, nunca nos impuseram os limites da sociedade saudita, conservadora e tribal. Meu pai sempre quis e trabalhou para que suas filhas alcançassem o que quisessem na vida e isso é raro na Arábia Saudita. Ninguém nos visitava porque éramos diferentes. Hoje eu agradeço meus pais por terem nos criado dessa forma, mas durante minha adolescência, eu sempre me sentia uma estranha.

Alguns jornais disseram que você recebeu ameaças de morte. Isso é verdade?

Todo mundo que trabalha com mídia na Arábia Saudita recebe ameaças de morte em algum momento. No começo da minha carreira, quando eu comecei a fazer filmes, meu pai recebia muitos e-mails e cartas dizendo “Como você ousa deixar sua filha aparecer na televisão e dirigir filmes? A fazer todas essas coisas desonrosas?” Ele nunca cedeu à pressão social. As mulheres sauditas sofrem muito, mas os homens também sofrem muita pressão: devem ser os guardiões dos bons costumes, devem proteger suas casas e controlar suas mulheres. Meu pai sempre sofreu com isso.

“A bicicleta é uma metáfora para liberdade de movimento, que não existe para mulheres e garotas na Arábia Saudita. Se eu quero ir a qualquer lugar, preciso de permissão de algum homem da família”

Você enfrentou dificuldades para filmar dentro do país?

Não é fácil ser mulher no país e é ainda mais difícil ser uma mulher no comando. Por eu ser mulher e jovem, as pessoas envolvidas na produção do filme sempre me questionaram, mas aos poucos elas foram entendendo que tinham que me respeitar para trabalharmos bem e alcançarmos nosso objetivo. Eu tive apoio do Príncipe Al Waleed bin Talal, que está apoiando as mulheres sauditas a conquistar seus diretitos no reino, e eu fui muito sortuda de ter produtores que estavam dispostos a pensar fora da caixa. As pessoas ainda são relutantes em mudar, mas só o fato de o filme ter sido rodado dentro da Arábia Saudita já mostra que a sociedade está se abrindo.

A bicicleta de Wadjda funciona como uma metáfora para a falta de liberdade da mulher saudita?

A bicicleta é uma metáfora para liberdade de movimento, que não existe para mulheres e garotas na Arábia Saudita. Se eu quero ir a qualquer lugar, preciso de permissão de algum homem da família. Eu não posso dirigir um carro nem mesmo andar na rua ou tomar um trem sem permissão. Eu queria que a aceleração, o movimento da bicicleta desse vida ao debate intelectual e fizesse as pessoas entenderem que isso é apenas movimento. Ess foi a forma que encontrei de dar uma face humana, levar vida a alguns desses problemas de que falamos de um maneira tão teórica.

Se uma mulher saudita não sabe cozinhar ou não quer se casar, como ela é vista pela sociedade?

O estereótipo do papel das mulheres tem sido o mesmo por muito anos e é esperado que elas vivam dentro de casa, nos seus mundos isolados. As pessoas não gostam de ver as mulheres na rua, trabalhando com homens. Foi difícil para mim driblar as dificuldades que a segregação de gêneros impõe enquanto eu rodava o filme porque eu queria e precisava estar com meus atores, com os homens.

Como você conheceu Waad Mohammed?

Encontramos Waad no último momento possível. Nós não pudemos fazer casting aberto no país então contamos com olheiros em Riade. Waad apareceu com seu cabelo bagunçado, tênis All Star, fones de ouvidos enormes e roupas moderninhas e pensamos “De onde essa garota saiu?” Ela é muito como Wadjda na vida real, tem muito entusiasmo pela vida e muito potencial. Eu espero que o filme ajude a encorajar garotas como Waad a se arriscarem (e isso é mesmo um risco!), se imporem.

“A Arábia Saudita ainda tem um longo caminho a percorrer, as mulheres ainda têm que lutar muito, se unir, se impôr… Fazer filmes foi a minha maneira de fazer isso”

Como foi a recepção do público, especialmente mulheres, na Arábia Saudita?

O Festival Internacional de Cinema de Dubai foi um grande momento para mim porque foi a primeira vez que o filme foi mostrado no Oriente Médio. Nós não temos cinemas na Arábia Saudita – eles são proibidos –, então nos sentimos recebidos em Dubai, depois de viajar por vários outros países com o filme. Foi como se estivéssemos voltando para casa para mostrar aos nossos parentes o que tínhamos feito, esperando orgulho da parte deles. Eu fiquei muito nervosa porque O sonho de Wadjda é um filme sobre eles e muito feliz porque sauditas vieram até mim depois da seção. Eu me senti tão honrada e orgulhosa que eles fizeram o esforço para estar ali e ver o filme.

02Como você ensina sua filha a lidar com a vida e fazer os sonhos se tornarem realidade?

Eu tenho 38 anos e dois filhos, Adam, de 5 anos, e Haylie, de 3 anos. Meu marido me apoia muito, ele e as crianças sempre tentam viajar comigo para festivais e quando eu estou filmando algum projeto. Eu quero que minha filha tenha uma vida melhor que a que eu tive e que as mulheres sauditas têm, que seja mais exposta ao mundo do que eu fui. Eu quero que as pessoas respeitem-na, eu quero que ela sinta que está no comando das coisas. A Arábia Saudita ainda tem um longo caminho a percorrer, as mulheres ainda têm que lutar muito, se unir, se impôr… Fazer filmes foi a minha maneira de fazer isso.

Qual a sua opinião sobre essa nova permissão para as mulheres sauditas andarem de bicicletas e motos, mesmo que só para lazer?

Isso é uma coisa interessante, não é? Eu estou feliz que garotas terão a oportunidade de aprender a andar de bicicleta e sentir a liberdade e a alegria que vem junto com qualquer tipo de esporte outdoor. A polícia deve ser elogiada por dar mais liberdade às mulheres, mesmo que essas liberdades ainda sejam muito pequenas.

Confira o trailer:

Fonte: Revista TPM

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