24 de novembro de 2024
Ciclovia

Programa Bicicleta Brasil completa um ano sem sair do papel

Grupo gestor no Congresso, com participação de 40 organizações, começa a debater sua regulamentação

Vinte mil mortos. Esse é o saldo negativo direto, em vidas humanas, da falta de segurança para os usuários de bicicletas no Brasil em quase 15 anos.

No rol de fatores que podem explicar tamanha fragilidade estão, evidentemente, as falhas nas políticas públicas voltadas ao desenvolvimento e sustentação do transporte cicloviário no Brasil durante mais de uma década. Entre as falhas, é possível mencionar tanto os erros de planejamento e a má execução quanto a própria ausência dessas políticas — ou até a falta de um padrão mínimo para elas nas várias regiões do Brasil.

Conforme o Ministério da Saúde, 1.306 ciclistas morreram vítimas de acidentes no Brasil só em 2017. E o quadro não tem se alterado significativamente desde 2004, quando o hoje extinto Ministério das Cidades lançou o programa Bicicleta Brasil, reeditado em bases ampliadas na forma de uma lei aprovada em 2018 pelo Congresso e sancionada logo depois pelo presidente da República.

Dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) mostram que, há 15 anos, o total de ciclistas mortos havia sido de 1.389. No intervalo até 2017, último dado disponível, sofreu algumas variações para baixo e para cima, chegando a 1.668 em 2006, mas situando-se na média anual de 1,4 mil.

“Há uma incompatibilidade de discursos de mobilidade entre o rodoviarismo e o cicloativismo. Esta disputa de discursos fica evidenciada no governo federal, com avanços para visão cicloativista a partir de 2004, com o Programa Bicicleta Brasil, e retrocessos a partir de ano de 2009 com fortalecimento da visão rodoviarista e estímulo econômico e fiscal para compra de automóveis pelo governo federal, com destaque para a diminuição do imposto sobre produtos industrializados (IPI)”, diz o estudo Cidades Cicláveis, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

De acordo com o texto, circulam pelo país cerca de 50 milhões de bicicletas contra 41 milhões de carros. Mesmo diante dessa diferença expressiva, não há boa cobertura de ciclovias ou ciclofaixas nas cidades brasileiras. Obrigados a pedalar junto aos automóveis, sem medidas de segurança, os ciclistas estão submetidos ao perigo de trafegar em vias nas quais se pratica, legal ou ilegalmente, a alta velocidade, e ao desrespeito latente, e muitas vezes explícito, dos condutores de carros, motos, caminhões e ônibus.

Programa Bicicleta Brasil
Arte: Agência Senado (com informações do Ministério da Saúde)

A Lei 13.724/2018, que instituiu o Programa Bicicleta Brasil (PBB) é uma tentativa de melhorar as condições gerais da mobilidade urbana brasileira, sobrecarregada pelo fluxo intenso de veículos motorizados. A proteção aos ciclistas não é mencionada diretamente em seus artigos, a não ser quanto ao estabelecimento de vias intermunicipais “voltadas para o turismo e o lazer”.

O PPB tem como objetivos mais concretos aumentar a construção de ciclovias e a marcação de ciclofaixas e faixas compartilhadas (temporárias) nas pistas de rolagem. Mas não apenas isso: o texto prevê a implantação de sistemas de aluguel de bicicletas a baixo custo em terminais de transporte coletivo, onde também se pretende instalar bicicletários. A margem das vias e estacionamentos são locais destinados aos paraciclos, conjunto de suportes simples para prender bicicletas. Campanhas de incentivo ao uso da bicicleta estão igualmente previstas, assim como a instalação de equipamentos de apoio, como banheiros públicos e bebedouros em pontos estratégicos.

A legislação está completando um ano em outubro e não saiu do papel até o momento, embora o governo já esteja anunciando o início de discussões com vistas à sua regulamentação, que terá de levar em conta o apoio da esfera federal às ações a serem desenvolvidas por estados, municípios, organizações não governamentais e empresas privadas. Para participar do PBB, ONGs e empresários terão de se engajar em parcerias ou contratos público-privados.

Em última análise, regulamentar o PBB é dar cumprimento à Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012), que tem entre suas diretrizes priorizar os modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e os serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado.

Programa Bicicleta Brasil
Arte: Agência Senado

Nos dias 15 e 16 de outubro, o grupo gestor criado pela Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana e Serviços Urbanos (Semob) do Ministério do Desenvolvimento Regional, promoverá a primeira oficina para debater e propor medidas e ações necessárias a converter a política pública em realidade. A reunião terá lugar na sede da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), com a participação de quarenta organizações ligadas ao tema, incluindo a União de Ciclistas do Brasil (UCB) e a Frente Nacional de Prefeitos.

Além das oficinas, está prevista cooperação técnica durante 24 meses entre a Semob, a UCB e a Associação Bike Anjo.

“O acordo prevê a realização de ações para apoiar a implementação, estruturação e operação do PBB e ações de apoio aos municípios e estados na área de mobilidade por bicicleta e nos planos de mobilidade urbana”, esclareceu a secretaria, por meio de nota técnica enviada pela sua assessoria de imprensa.

O PBB é mais exemplo de política pública aprovada de forma unilateral pelo Legislativo — seja porque o Executivo deixou de cumprir seu papel, seja porque os parlamentares entendem que uma lei tem mais chance de se impor e seguir vigorando do que uma portaria ministerial.

Programa Bicicleta Brasil
Senador Eduardo Braga na sessão que aprovou a Lei do Programa Bicicleta Brasil – Foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado

Quando da aprovação da matéria no Senado, em setembro de 2018, o relator, senador Eduardo Braga (MDB-AM), demonstrou otimismo: “com a implantação do PBB, cidades que já desenvolvem ações para valorizar o transporte por bicicleta contarão com maior apoio, particularmente financeiro, e aquelas que ainda não o fazem se sentirão motivadas a desenvolver projetos como este”.

É um cenário de contornos promissores. O que se conhece dos resultados obtidos pela versão administrativa do programa é muito pouco. Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) mencionada em estudo sobre mobilidade elaborado pela Câmara dos Deputados em 2015 indica que os programas para a mobilidade a cargo do Ministério das Cidades não obtiveram êxito em diminuir a prioridade para os veículos motorizados individuais. O aumento da frota de carros continuou a receber incentivos fiscais ao passo que a execução orçamentária se mostrou sempre abaixo do planejado. Ou seja, a maior parte das verbas previstas no Orçamento dificilmente se converteu em obras.

Além da escassez de recursos, um dos grandes abacaxis a serem descascados pelo grupo de regulamentação é o da capacitação técnica de prefeituras, fundamental para que bons projetos sejam levados a execução.

Problema comum no Brasil é o da ciclovia que, na linguagem popular, “leva do nada ao lugar nenhum”. Isso decorre de trajetos não pensados para se ligarem a outras ciclovias e aos demais modais de longa distância, como o ônibus e o metrô. O ideal para a bicicleta, dizem os técnicos, são as distâncias de aproximadamente cinco quilômetros, trate-se de trecho único ou conexão a sistemas mais abrangentes.

Estudo da Consultoria Legislativa da Câmara corrobora a avaliação de que a malha cicloviária no Brasil tem crescido aos trancos e barrancos, por causa dos projetos equivocados e da má qualidade de obras. Mas tem crescido — embora fosse melhor crescer com mais lógica e qualidade.

Em prefácio ao estudo Mobilidade por Bicicleta no Brasil, de 2016, o jornalista e ambientalista André Trigueiro observa que a implantação de ciclovias tem dependido muito de pressões locais e não necessariamente do pro-ativismo de prefeitos: “alguns governantes se dobraram ao ideário do cicloativismo por convicção ou conveniência. Perceberam o custo da inação, de não fazer nada de novo enquanto o nó da imobilidade cresce e inquieta os eleitores. Se surpreenderam com a contagem das bicicletas em partes da cidade onde ninguém ainda antes havia prestado atenção nisso. Aceitaram mobilizar o corpo técnico  municipal — especialmente seus engenheiros de tráfego —para refletir junto com os ciclistas sobre eventuais ajustes de projeto”.

Foi o que aconteceu em 1993 ao então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, segundo linha do  tempo publicada pelo jornal Folha de S.Paulo: depois de um protesto de ciclistas noturnos e do Greenpeace, prometeu construir 300 km de ciclovias, mas acabou entregando só 29 km, sendo 25 km deles em parques.

O último levantamento do site Mobilize indica uma malha de 2.542,6 quilômetros, no total de 19 capitais, mas essa extensão é maior, ainda que não se contabilizem as vias próprias em cidades grandes, como Uberlândia (MG), que abriga 691,3 mil habitantes, e médias, como Macaé (RJ), onde habitam 256,6 mil pessoas. O próprio Mobilize cita levantamento publicado pelo site G1 apontando um total de 3.291 quilômetros nas 27 capitais — apenas 3,1% da malha viária total das cidades. Em 2014, a malha das capitais era de 1.414 quilômetros, o que indica um crescimento de 133%.

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Arte: Agência Senado (com informações do Mobilize Brasil

Diante do caráter esporádico de ações que promovam o uso da bicicleta, acentuado a cada mudança de governo, as oficinas e o acordo de cooperação técnica entre governo e ONGs surgem como a esperança de que o tratamento da questão possa evoluir para um conjunto de providências sistemáticas e continuadas.

O maior detalhamento das fontes e formas de financiamento do Bicicleta Brasil, que prevê genericamente o abastecimento com dotações específicas das três esferas de governo, recursos da contribuição Cide-combustíveis e de organizações privadas vai demandar esforço do grupo. Segundo o Ministério da Economia, a Cide-combustíveis destinada aos municípios somou 1,05 bilhão entre 2016 e 2018, uma média de R$ 352, milhões anuais, ou R$ 29,4 milhões mensais. A média mensal em 2019 até julho se situou em 22,08 milhões, projetando uma arrecadação anual de R$ 264,9 milhões, se nada mudar para melhor.

Para termos uma ideia do que esses números significam, basta saber que apenas o novo plano cicloviário da cidade de São Paulo prevê gastos de R$ 325 milhões.

Consultas junto a entidades que cuidam do assunto indicam que a Cide-combustível não é considerada ponto pacífico. O coordenador técnico da UCB, Yuriê Baptista, explica que a contribuição não é adequada para financiar o Bicicleta Brasil porque o valor da arrecadação varia a cada mês. Ou seja, as prefeituras não poderiam planejar suas aplicações nos projetos. Além disso, o recurso não é exclusivo para financiar a mobilidade por bicicleta, mas voltado para toda a infraestrutura de transportes.

Durante a fase de aprovação, o projeto previa que 15% do valor da arrecadação de multas de trânsito iria para o PBB, mas o item foi vetado pela Presidência da República com o argumento de que poderia diminuir as verbas destinadas a ações de segurança de trânsito. A solução, no entendimento do coordenador da UCB, é que do total da arrecadação federal, parte vá para a promoção do uso da bicicleta:

“A gente precisa, de fato, que além desses recursos vinculados, seja Cide-combustíveis, seja multa de trânsito, que a mobilidade por bicicleta e as ações para promover a mobilidade sejam incluídas no Orçamento público. Então, [de] todo o bolo que a união recebe, de contribuições, de recursos, uma parte tem que ser destinada à bicicleta, da mesma forma que é destinada para saúde e educação”.

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A técnica do CNM, Luma Costa, afirma que o espaço público de trânsito precisa ser melhor distribuído – Foto: TVCNM

De acordo com a analista técnica de trânsito e mobilidade da CNM, Luma Costa, não há problema com o financiamento do programa pela Cide:

“Acho muito válido o financiamento de recursos vir da Cide-combustíveis, porque o transporte individual gera seu impacto, apesar de as pessoas acharem que elas pagam muito imposto por estar circulando. Existe também a utilização de uma infraestrutura viária, que é comum, que está sendo ocupada, e não é democrática. Não está circulando a maior parte da população naquela infraestrutura, está circulando quem está no carro e, geralmente, está sozinho nele”.

O PBB será desenvolvido no âmbito da Estratégia Nacional de Promoção da Mobilidade por Bicicleta até 2040, ação conjunta do poder público, empresas e sociedade civil, com monitoramento e avaliação elaborada pela UCB. O programa é o primeiro passo da estratégia e vai buscar estimular o uso da bicicleta em níveis municipal, estadual e federal.

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Malha cicloviária total do país é desconhecida. Na cidade de São Paulo, há cerca de 500 quilômetros de vias próprias para o ciclismo – Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil

Os municípios seriam grandes beneficiados pelo programa, uma vez que a maioria deles não tem transporte público e sofre para construir estruturas de trânsito e implantar elementos simples, como sinalização.

A contemplação do modal cicloviário nas políticas públicas, entretanto, padece da falta de visão sobre as diversas vantagens que isso traria ao país em termos humanos, econômicos e ambientais, já que pedalar faz bem à saúde e não polui. Recentemente o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) publicou uma pesquisa relacionada ao uso da bicicleta em São Paulo, concluindo que a adesão da população paulistana ao uso da bicicleta resultaria numa economia de R$ 34 milhões por ano ao Sistema Único de Saúde (SUS). A economia viria da queda do número de internações por diabetes ou doenças circulatórias, com base em dados oficiais do setor hospitalar.

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Arte: Agência Senado (com informações do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap)

A falta de apoio e pressão mais vigorosa por parte da sociedade decorre, por outro lado, do comodismo de quem tem ou quer ter um carro e de preconceitos.

Pesquisa do Ipea realizada em 2017 revelou que o uso da bicicleta é encarado de forma pejorativa por estar ligado à suposta baixa renda do usuário. Além disso, é prejudicado pela prioridade a outros tipos de veículos em função de objetivos governamentais nem sempre alcançados, como o aquecimento da economia e a criação de empregos.

Com a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por exemplo, a compra de motos no Brasil cresceu. Muitos, que antes usavam bicicleta ou veículo de tração animal (carroças), passaram a se deslocar em motos. Isso é problemático para a mobilidade e a segurança de condutores, segundo Luma Costa. Em regiões rurais, as vias não têm visibilidade e há pouca sinalização. O resultado é que os motociclistas acabam sendo os mais afetados.

“A infraestrutura para facilitar a travessia do ciclista nas vias que estão cortando municípios evita muitas mortes. Geraria um impacto grande. Não estamos falando apenas de ciclovia, estamos falando de uma política geral que poderia incluir ponto para o ciclista estacionar a bicicleta dele, pontos para o ciclista tomar banho antes de ir ao trabalho. Os benefícios vão impactar outras áreas porque transporte é um tema transversal, vai estar impactando saúde e acesso ao trabalho”, explica a analista.

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Lugares de difícil acesso para o ciclista contribuem para o desestímulo do uso da bicicleta – Foto: Mariana Gil / WRI Brasil

Entre as alternativas para a melhoria da mobilidade e os aspectos sociais que a ela se ligam, está o Avançar Cidades, programa de iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Regional que destina recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para a mobilidade urbana. Entretanto, enfrenta a barreira do endividamento municipal: os recursos são repassados na forma de empréstimos e precisam, portanto, serem devolvidos.

Dependendo do nível de endividamento, os municípios sequer estão habilitados a pegarem novos empréstimos.

Para se contrapor à marcha-lenta que caracteriza as ações nos Poderes Executivos federal, estadual e municipal, o Congresso ensaia uma reação, depois da aprovação do PBB, que teve origem em projeto de lei do então deputado Jaime Martins. Em setembro passado, foi lançada na Câmara dos Deputados a Frente Parlamentar de Defesa do Ciclista, com o objetivo de escutar de aprovar propostas que beneficiem o transporte ciclístico.

Por que cultura e tradição contam

A primeira ciclovia de São Paulo, que na época recebeu o nome de “pista para bicicletas”, foi construída em 1976. Dois anos depois, nascia o ciclista e cicloativista Uirá Lourenço. Paulistano, biólogo pela Universidade de São Paulo e servidor público, ele utiliza a bicicleta como principal meio de deslocamento em Brasília, mas não teve a oportunidade de conhecer a ciclovia, nem como curiosidade. Isso porque, em 1988, quando ele tinha apenas dois anos, ela foi substituída por um túnel rodoviário.

Quando ainda residia em São Paulo, Uirá decidiu largar o carro em função do grande estresse e perda de tempo com o trânsito. Hoje vai ao trabalho de bicicleta todos os dias. Gasta cerca de 23 minutos e pedala por volta de 5 quilômetros.

“São muitas as vantagens de usar a bicicleta no dia a dia. A praticidade, a questão da saúde. Sei o tempo que vou levar até o meu local de trabalho, já faço exercícios no dia a dia, então não gasto com academia. O tempo que eu levo no trajeto é sempre o mesmo, independe de clima. Às vezes, chega a ser mais rápido que de carro, dependendo do horário”, conta o servidor.

Por causa do ativismo, sua habilitação venceu há alguns anos não foi renovada. E essa atitude se estende para toda a família que também não utiliza automóvel. Quando não estão pedalando, esposa e filhos se deslocam por meio de transporte coletivo ou a pé.

O caso da família de Uirá é uma exceção. Há residências no país que dispõem de dois carros ou mais e nenhuma bicicleta. Na Holanda, referência em deslocamento cicloviário, é o contrário: ao comprarem um carro, as famílias normalmente já têm como patrimônio duas bicicletas, segundo o economista e mestre em desenvolvimento sustentável, José Maria Reganhan, assistente de Pesquisa do Ipea.

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Uirá Lourenço, ativista do ciclismo e do transporte a pé, abandonou completamente o uso do automóvel – Foto: Roniele Barbosa da Silva

Tradição e cultura contam: a primeira ciclovia da Holanda foi construída em Utrecht em 1885, quase um século antes da de São Paulo, graças a uma petição assinada por 44 amadores, de acordo com o site Cidades In Comum. Eles queriam utilizar uma trilha existente como espaço para aprenderem a pedalar. “A primeira ciclovia criada ao lado de uma via principal (para carros) na Holanda, em Brabant, data de 1896”, informa o site.

Os países da Europa têm liderado igualmente a transição de uma cultura rodoviária urbana em direção à ampliação de espaços para o transporte não motorizado (a pé e por bicicletas). Estão de olho no bem-estar da população, na melhoria do meio ambiente e até em ganhos econômicos, como acesso mais fácil ao comércio, consumo de material ciclístico, turismo e gastronomia.

É uma busca de sintonia com mudanças comportamentais que acompanham demandas por mais liberdade e igualdade, respeito à natureza, pacifismo e hábitos saudáveis. Essas mesmas transformações colocaram nas ruas das cidades contingentes de novos ciclistas em modelos de bicicletas cada vez mais sofisticados, roupas especiais, equipamentos de segurança e uma postura de ocupação de espaços direcionada ao modelo de cidadania que requer o chamado “direito à cidade”.

Individualmente ou em comboios, esses ciclistas, ao mesmo tempo que fazem da bicicleta um meio de transporte e plataforma de exercícios físicos, convertem-se em ativistas de um urbanismo revolucionário pela sua própria presença entre carros. Muitos desses ciclistas, infelizmente, terminaram se tornando mártires, ao perderem a vida no trânsito hostil.

O Brasil tem se notabilizado nesse tipo de “acidente”. A principal razão é a chamada “cultura rodoviarista”, que privilegia vias de tráfego rápido, com poucos espaços para ciclistas e pedestres, além de escassas travessias seguras. A capital do país é um exemplo claro. Construída na década de 60, concomitantemente à explosão da indústria automobilística, Brasília foi planejada com generosa  oferta de vias para automóveis. Apesar do incentivo ao uso do modal cicloviário ter crescido na cidade, e a malha específica ser a terceira maior do Brasil (420 quilômetros), nos lugares em que falta essa estrutura, a competição das bicicletas com os carros é desleal. Há pistas cujo limite de velocidade é de 80 km/h, mas mesmo naquelas de 60 km/h as infrações ocorrem com frequência — seja por causa da toada dos motoristas seja em razão da distância que não guardam dos ciclistas.

“É preciso pensar em uma cidade com limite de velocidade de 30 a 50 km/h, velocidades que permitem ao motorista ter o tempo de reação adequado para evitar colisão ou atropelamento. Você cria mais segurança, mais atratividade, inclusive para as pessoas estarem na rua aproveitando o ambiente urbano, para as crianças brincarem e idosos se deslocarem”, afirmou Yuriê Baptista, coordenador de Incidência Executiva da União de Ciclistas do Brasil.

O projeto Rede Nacional para a Mobilidade de Baixo Carbono — Ruas Completas procura dar resposta a essa ansiedade e mudar a cultura de trânsito brasileiro para um modelo mais inclusivo e ambientalmente saudável por meio da troca de prioridades. Afinal, o carro é o modal de transporte que, proporcionalmente, tem a pior relação no que se refere à emissão de poluentes e capacidade de transporte.

Iniciativa da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e do instituto de pesquisa WRI Brasil, o Ruas Completas tem como metas, entre outras, o nivelamento da via com as calçadas — o que ajudaria o ciclista e o pedestre —, medidas moderadoras de tráfego, sinalização clara e orientada ao pedestre, diminuição da oferta de estacionamento gratuito para carros e ciclovias ou ciclofaixas.

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Arte: Agência Senado (com informações do Transport and Climate Change Global Status Report 2018)

Projetos bem elaborados fazem a diferença, diz consultor

De acordo com o consultor legislativo para a área de transportes Túlio Leal, o deslocamento por meio de bicicleta é atrativo à população em trajetos curtos, de 4 a 5 quilômetros. Uma boa medida, portanto, seria estimular o uso da bicicleta para crianças e adolescentes irem à escola. No caso das famílias de classe média, é comum que esse trajeto seja feito, desnecessariamente, de carro.

Leal deixa claro que bicicleta não é a solução para todos os problemas do trânsito. Contudo, o aumento do número de deslocamentos cicloviários diminuiria as viagens por carro e reduziria a pressão pelo uso do automóvel.

O que o consultor aponta como comportamento viável a ser tomado pelo governo federal é capacitar, à distância, engenheiros e arquitetos municipais. Gestores se preparariam através de manuais de planejamento e execução de vias para bicicletas que sintetizassem as melhores práticas de engenharia. Juntamente à capacitação, seria necessário o aporte financeiro:

“São duas soluções articuladas. Primeiro você oferece a capacidade de que o município possa planejar, depois você oferece o suporte financeiro para que eles implantem essas soluções que foram geradas nessa primeira etapa”.

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Foto: Dênio Simões / Agência Brasília

Durante sua pesquisa de mestrado em engenharia cicloviária, Leal identificou fatores que impedem um indivíduo de pedalar. O principal deles é a desconexão entre as estruturas cicloviárias. Ao não se ligarem entre si e a outros sistemas de transporte, acabam deixando o ciclista desamparado em algum ponto.

Outros aspectos de engenharia, como inclinação do terreno e falta de iluminação e de arborização adequada, também impedem indivíduos de utilizarem com maior frequência o modal. A sombra pode ser um bom aliado do ciclista durante o dia, especialmente num país majoritariamente tropical, como é o Brasil. À noite, porém, é preciso tomar cuidado para que caminhos mal iluminados não causem acidentes e sujeitem o usuário a assaltos.

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Foto: Agência Senado

A bicicleta como forma de locomoção é historicamente ligada à baixa renda do usuário e vista de forma negativa. Entretanto, essa visão começa a mudar quando surgem bicicletas de modo compartilhado. Dessa forma, Túlio diz que o que ocorre hoje, principalmente nos grandes centros, é uma inversão: o deslocamento cicloviário, que antes era veículo de camadas da população com menor poder aquisitivo, começa a ter um apelo para pessoas mais favorecidas economicamente, do mesmo modo como a patinete é uma forma de integração a ônibus, trens e metrôs.

“Se as pessoas virem que os mais ricos é que estão usando bicicleta, talvez isso melhore a imagem do modal e você possa ter a retomada do uso por ser associada a uma capacidade financeira maior”, constata o consultor.

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Fonte: Agência Senado e Mobilize Brasil

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